As histórias do Zé davam um filme

O jornalista José Hamilton relança seu livro O Gosto da Guerra, em BH.
 

O cenário não era novidade. O que tinha mudado eram os personagens. Agora o protagonista era um senhor bem simpático. Sentado na parte mais alta daquele local que transbordava de pessoas. A trilha sonora foi cantada por uma dupla que apareceu e por alguns instantes roubou a cena. Eles tocaram a música Tocando em Frente, de Almir Sater e Renato Teixeira. O nome parece estranho, mas o trecho “Ando devagar porque já tive pressa...” é bem conhecido. O senhor simpático estava com o roteiro nas mãos, escrito em uma folha de papel. Se ele o seguiria ao pé da letra não sabíamos, mas ele não havia decorado as falas e tinha a cola caso fosse preciso. E acabou sendo. Várias vezes ele se valia do papel para relembrar o roteiro das cenas.

Como um narrador, o coadjuvante apresentou o personagem principal de nome José Hamilton Ribeiro, 70 anos e 50 como jornalista. Começava o espetáculo. Era hora de desligar o celular e trocar a pipoca e o refrigerante por um bloquinho e uma caneta nas mãos. Olhos e ouvidos atentos. Ele iniciou a primeira cena dizendo que não falaria de literatura. Logo no início percebemos que as primeiras cenas seriam de um monólogo do personagem principal. E para abrir a sessão das falas ele se perguntou o que é uma grande reportagem. E respondeu com uma frase de Gabriel Garcia Marques: “A grande reportagem é um gênero literário comparado ao romance.” José Hamilton, carinhosamente apelidado de Zé, contou que uma vez ouviu que para fazer uma boa reportagem é preciso sorte e paciência. Pensou consigo:“isso é para ganhar no bingo”. O jornalista tem uma fórmula algébrica para se fazer uma grande reportagem: um bom começo mais um bom final mais talento vezes trabalho elevado a tudo o que for necessário. “Se num der certo, reclama comigo”. Diz.

O começo já fez o público questionar se aquele seria um espetáculo de comédia. Fato é que ele provocara risos na platéia. E seguiu a cena dizendo que há três profissões femininas: medicina, sacerdócio e jornalismo. No seu livro Jornalismo 37/97, uma história da imprensa contada a partir dos jornalistas, Zé constatou que mulher era raro nas redações e que hoje elas já são maioria nas revistas e TV e só perdem no rádio e no jornal impresso. No livro, há uma estatística indicando que em 2018 as mulheres “tomam” o jornalismo. O personagem principal atribui tal primazia as mulheres serem muito curiosas a profissão segundo ele depende da curiosidade. “A curiosidade é a mãe da fofoca e a notícia é uma fofoca confirmada,” explica. Ao fim dessa frase, ele se desliga da cena e abre um parêntese para dizer que está apanhando de sua cola.

Já no meio daquele roteiro sofremos um flash back e fomos reviver a guerra do Vietnã, ou melhor, vivê-la aos olhos do senhor simpático. Quem vê aquele rosto cheio de rugas, aquele jeito de falar tranqüilo talvez nem imagine o que ele passou. O jornalista cobriu a guerra. E também perdeu a perna nela. Ele contou que o jornalista que cobre a guerra não pode publicar tudo o que sabe a respeito dela e que mesmo o seu país de origem não esteja envolvido nela, o profissional pode ser taxado como traidor. O protagonista declarou que é traço psicológico do jornalista estar do lado que aparente ser o mais fraco na guerra. E relatou que embora a imprensa tenha colocado os EUA como o “forte” e o Vietnã como “coitadinho”, os dois países eram duas potências na guerra.

A fotografia escura que compunha as cenas condizia com aquela história da guerra. Esse que é um assunto delicado e obscuro. Mas vamos continuar com as histórias de Zé, que tem muito para contar. Ele explicou que a guerra sem jornalistas é pior porque a presença do jornalista inibe a violência. O personagem afirmou que a guerra tem importância quando há alguém para falar sobre ela. Contou que quando estava na guerra, seu seguro de vida tinha um problema de fuso horário e por isso deveria voltar no dia 19 do Vietnã, porém o fotografo lhe pediu que ficasse mais um dia para tirar a foto de capa. O jornalista ficou e exatamente no dia 20 pisou em uma mina que explodiu e o deixou sem a perna.

Nesse momento, até pareceu aqueles roteiros sensacionalistas, mas o que ele contou a seguir foi muito mais impactante. Depois de ter perdido a perna, segundo o velhinho, os onze dias que seguiram foram terríveis. Uma rotina de dor, morfina e vômitos. Lembrou que tinha uma televisão na enfermaria e que ele não sabia se era noite ou dia. Chegado um certo horário, eles desligavam a TV. Então, “Eu chorava com mais pena de mim do que dos outros.” Com o tempo e já andando começou a seguir o barulho dos choros todas as vezes ele encontrou ou um vietnamita ou gente de ascendência latina. “Americano não chora”, afirmou. Dito isso, viajamos um pouco no interior do personagem Ele admitiu que seu maior medo na guerra era morrer e ninguém saber. Alguém perguntar:

- Cadê o Zé?

E outro responder:

- Ah morreu por ai.

Nesse momento saímos do gênero drama e voltamos a fazer uma passagem pela comédia. O protagonista provocou mais risos na platéia. A respeito do perigo, contou que na mesma época que cobria a guerra um fotógrafo que fazia imagens de uma peça de teatro caiu e morreu. “Então na estatística da Revista Realidade, que eu trabalhava na época, cobrir peça é mais perigoso do que ir para a guerra.”

Nas seqüências posteriores, o senhor não perdeu o bom humor. E falou sobre uma de suas experiências na Globo. De acordo com o protagonista o pessoal da emissora o levou para uma sala escura que passou um vídeo sobre ele e depois o diretor da emissora o convidou para almoçar com toda “nata” de lá. Ele sentiu-se abafando. “No outro dia, eu cai na CGB, ‘Central Globo de Boatos’. É lá que a gente fica sabendo quem está grávida, quem foi para a Record”. No outro dia uma moça lhe perguntou:

- Zé você está doente?

“Poxa! Chega para uma pessoa de 70 anos e pergunta se ela está doente. Até eu mesmo desconfiei será?”

- Não. Por quê?

Então a moça completa:

- Firma grande, quando homenageia funcionário ou a pessoa está com câncer ou vai ser mandada embora. Então você só vai ser mandado embora.

No fim da noite e também no fim do monólogo, abriu-se espaço para interação do público junto ao José Hamilton. Perguntaram ao Zé uma reportagem que ele gostaria de fazer e não fez. Respondeu que fez uma lista com dez grandes reportagens para o Globo Rural. Toda vez que faz uma acrescenta outra, para sempre ter a lista com dez. No desfecho da palestra o apresentador contou uma de suas histórias no programa. Segundo ele, depois de fazer entrevista com um fazendeiro, o senhor disse que o jornalista tinha de conhecer sua esposa. Então foram conhecê-la. Chegando lá, a mulher muito eufórica pulou e abraçou o jornalista. Foi aí que o fazendeiro lhe declarou que a esposa não era sempre assim e lhe contou uma história que o Zé disse ser assim: “Quando Deus fez o homem ele tinha um balde de juízo do lado. Ao terminar de modelá-lo Deus soprou, o homem acordou, o Divino enfiou a mão no balde e colocou sobre a cabeça dele e o juízo escorreu sobre todo o corpo do homem. Depois, foi a vez da mulher Deus também estava com o balde do juízo. Porém quando ele soprou a mulher acordou e saiu correndo. Então ele jogou o juízo que pegou na cintura dela e escorreu pelo resto do corpo. E assim a mulher só tem juízo da cintura para baixo”. E foi dessa forma que terminou o espetáculo. E só restaram os bastidores.


Um pouco sobre o Zé.

Depois de toda essa viagem no tempo, é hora de explicar um pouco mais sobre o nosso personagem principal e sobre as cenas que aconteceram no dia. José Hamilton Ribeiro hoje apresenta o globo rural, programa que passa pela manhã na TV Globo. Como jornalista ele já recebeu 8 prêmios Esso. Trabalhou na Revista Realidade e Quatro Rodas, na Folha de S. Paulo e nos programas Globo Repórter e Fantástico. Suas historias lhe renderam vários livros, como O Gosto da Guerra (1969) Pantanal Amor Bágua (1974) Senhor Jequitibá (1979) Gota de Sol (1992) Vingança do Índio Cavaleiro (1997) Jornalistas 37/97 (1998). E foi para relançar o livro O Gosto da Guerra, em uma palestra contando como foi sua passagem pelo Vietnã, que o jornalista veio a Belo Horizonte. Na noite de quinta feira do dia 6 de novembro, a Academia Mineira de Letras ficou lotada para vê-lo. A entrada foi gratuita e os primeiros 50 livros foram vendidos ao preço de R$ 5,00.

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