abrigo
















debruçada nas paisagens que iam embora
eu observava as pessoas ao meu redor
o cara com o radinho
a moça fazendo sombracelha
o senhor com chapéu e bengala
naquele trem, eu era só mais uma

parecia que alguém havia desligado o meu radinho
aquele que tocava as sirenas, buzinas e xingamentos do trânsito
ali a minha sombracelha dava um semblante tranquilo a minha face
quanto a colocar algo na cabeça, a perseguição cognitiva diária
e a bengala que fazia eu me preocupar com os caminhos que eu ia trilhar
nem estavam lá

aliás a única trilha que eu queria naquele momento era o barulho do trem
aquelas paradas nas estações,
parecia-me por alguns instantes que aquela solidão compartilhada fazia sentido
e aquele silêncio que tanto me dizia

aos poucos meu coração ia adormecendo
há dias ele vivia de insônia
agora ele se debruçou na janela do trem
deitou-se sereno, tranquilo

um rapaz pergunta se pode se sentar ao meu lado
eu nunca tinha visto ele
mas ele tinha os olhos mais brilhantes que eu já vi
como se estivesse deslumbrado com a viagem
acho que foi assim a primeira vez que viajei, mas havia me esquecido

quando cheguei sozinha na estação tomei um café
sentada naqueles banquinhos vermelhos eu me sentia num filme

o sereno, o vento, a chuva
e meu coração calmo, quase dormindo
há tempos eu não parava na estação pra tomar um café

Fui embora com a certeza de que eu precisava parar em algum ponto
que eu precisava de um abrigo
uma casinha tranquila, silenciosa
um repouso cá dentro para entender todo o barulho do lado de fora

cônjuge













as silhuetas se confundem a cada aproximação
recoste tua a alma a minha, ela pedia
perdida nos vários fragmentos de si
urgente era o abraço
aquele abraço que não vinha

o caminho era longo
queria mesmo era chegar a lugar nenhum
a noite era minima
repleta de desejos ocultos
esses sorrisos fazem morada em mim
mas vê-los agora está além de minhas pupilas

eu queria era perde-me em seus cabelos
queria perder-me em todos meus anseios
comer-te até o fundo
ver o corpo e o coração desnudos
sugar o sangue
só pra encontrar a alma
o tal abraço urgente

entre um vagão e outro há sempre um espaço pra fumantes
entre um cigarro e outro eu fico a me perguntar:
todo preterito é imperfeito?

queria mesmo era conjugar o tempo
ou quem sabe cônjugar o tempo
se é que isso é possivel.

foto de Christoffer R.

o cais

a saudade embarca no horizonte
enquanto eu continuo sentada solitária no cais
um enorme eco assola meu coração
noutra noite a dor não coube em mim
saltou pelos meus olhos e as minhas lágrimas fizeram-se mar
o que me aflinge é não poder ter balançado o lenço do adeus

outrora as distâncias me pareciam curtas
eu quase podia sentir a lua
naquelas noites o tempo não tinha hora pra acabar
o sol subia ao céu como as letras de FIM nos filmes
os sorrisos pairavam em meus lábios como as gaivotas no mar

noutra noite a lua me falava sobre as travessuras
enquanto eu recostava meus pensamentos sobre meu velho companheiro
aquele travesseiro que esteve comigo em todas as travessias
deito-me ao relento de minhas lembranças
o cais é um pouco frio, querido
não há como cobrir a alma

o silêncio me incomoda
a loucura deita-se comigo
é, ela nunca me abandona
encontro companhia naquela menina refletida na água
e adormeço, ainda inquieta
é que o silêncio me aflinge

amanhã o barulho dos barcos vão me acordar
e eu vou escrever um samba
porque num há melhor maneira de falar de tristeza de um jeito alegre
e lá vou eu chorar pelos barcos que se vão
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