Faz quarenta dias...

"Faz quarenta dias que eu estou no meu barco a vela
Não me sinto tão sozinho, eu tenho meus amigos
Só aparecem quando eu bebo
Só aparecem quando eu não sou eu"
(Musica: Pra abrir os olhos, banda Vanguart)

O fosforo queimava meu terceiro cigarro, na fumaça retocada pela luz eu via as pessoas passarem com seus relogios, apressadas, enquanto eu continuava sentada naquele banco da praça. Com medo que a qualquer momento meu peso fizesse ele tombar em alguma das pontas. As long necks ao meu lado vazias as 3 da manha. Eu queria avisar pra alguem que nem sempre foi assim e que eu ja sai rodeada de amigos. Antes deles terem relogios, cachorros e relatorios. Mas achei que nao seria conveniente parar um estranho pra dizer isso.

As 5 da manha todos pareciam ja ter criado seus proprios problemas e suas proprias afliçoes. Eu tinha um maço de calton vazio, umas long necks no chao, um pulmao destruido e um pouco de sono. Caminho meio tonta ao ponto de onibus. Encontrava com quem dividir um beijo, mas nao encontrava com quem dividir um sorriso.

Todos mergulharam-se em seus proprios problemas, eu e que fiquei a margem.  Com os baloes de oxigenio, ninguem sobe pra respirar e por consequencia ninguem me ve.


Mesmo rosto

Todos os dias as 19h volto a estaçao de trem para me despedir de Pedro. E um jeito de me sentir mais perto dele, como se ele estivesse ido embora ao pouco. Pedro tinha o mesmo rosto nas despedidas nao importava se tinhamos nos divertido, se tinhamos brigado, se tinhamos nos amado, que na hora de dar adeus, ele tinha o mesmo rosto. Era uma mistura de alegria, ternura e tristeza. Naquele dia, na estaçao de trem, Pedro teve o mesmo rosto ao ir embora.

No caminho de volta para casa sinto falta do barulho dos passos dele, da voz, do sotaque nordestino carregado que nao parava de falar, enquanto eu so sentia vergonha dele pegar a minha mao tao suada. Sinto falta da reclamaçao que ele arrumava quando  tinha que dividir a cama comigo e do mal humor matinal. Sinto falta do "te cuido" e de encaixar minha cabeça entre o pescoço e a cabeça dele.

Sabe aquela mania que eu tinha de colocar o despertador dez minutos mais cedo so pra acordar e ficar um pouco mais com voce, acabou. Eu nem sabia que mania acabava. Sabe aquela mesa de centro que voce sempre esquecia a chave, vendi. Agora a mania que voce tinha de nao colocar acento nas palavras, ficou pra mim.


As vezes a noite saio para caminhar, saio para te esquecer. Compro um cigarro picado, coloco o fone de ouvido, sento no banco da praça e leio o jornal. Tres long necks e depois fico ouvindo sua voz pela casa. Fico com saudade dos seus calçados espalhados pela casa. Daquele cheiro de sabao em po das suas camisas e do cheiro de suor do bone. Sabe que hoje eu quase fiquei com uma quase vontade de ir te ver, mas ai adormeci no sofa.


Pai ternal

Quase todos os dias passam sem com que a gente perceba, mas alguns marcam nossa vida para sempre. É quase como quando vc entra numa rua  e percebe que não tem saída e tem que voltar pelo mesmo caminho.
Hoje mais uma parte do meu pai morreu. Esse velório quase mensal tem tornado meu coração fúnebre. Acho que ainda não aprendi a viver sem o braço direito dele. Acho que na verdade eu não sei viver nem sem o dedo mindinho dele.  É como se eu tivesse perdendo meu cordão umbilical com o mundo. As vezes sinto vontade de voltar para o útero e retroceder os nove meses.

Eu ainda acordo no meio da noite pra ver se ele ainda está respirando e pra ver se eu ainda estou respirando. Eu ainda tento falar com ele todos os dias, num esforço imenso. As vezes apenas fico lá segurando a mão dele, pra que ele não desista ou pra que eu não desista. Quando digo para o mundo que está tudo bem, não é lá muito verdade. Quando eu  digo a ele que ele está bem, também não é lá muito verdade. Tem dias que marcam a gente pra sempre. Hoje uma pequena morte de uma parte, já me marcou, pra sempre.

Dança

Nenhuma exatidão cabe em uma dança a dois
Afinal de contas qual distância devemos manter entre um pé e outro?
A suficiente para deflorar um beijo sabor calton?

A curiosidade não me deixa ser permanente
Então o que fica é um desejo destilado
Tateado na geografia deslinear dos corpos

O nosso sentimento ninguém divide, ninguém leva
Fica amarrotado junto aos lençois engomados 

Meu gostar vem do prazer da palavra e não do tempo que dançamos
Quando abro a porta, o desejo sempre me estapea a cara, muito mais forte que meu nobre não

Toda fuga nos leva para algum lugar que já pretendiamos ir
Todo fim de abraço é um recomeço indesejado


Toda dor um dia vira saudade
"O amor não deixa sobreviventes" epitafia, por fim, Nelson Rodrigues na minha cabeça.

Bo- rã - o

A voracidade e a doçura se misturavam no reflexo dos meus dentes em teus olhos
Em meio a fumaça do cigarro, seu rosto era o borrão mais bonito que eu já tinha visto
Teus dedos entrelaçados aos meus cabelos faziam meus cachos cairem em serpentinas de carnaval
Mas faltava uma ponte entre o passo do meu desejo e a insegurança das minhas pernas

Seu corpo inteiro cheio de desenhos e nenhum nome, gritava: decifra-me
Diferente da trilha sonora que tinha nome e nenhuma letra
Danço nas suas beradas esperando tropeçar e cair em alguma porta aberta tua
Você ri do meu improviso, mas é que meu corpo já viveu demais para aquele figurino
Eu conto os dentes entre os teus lábios, mas não termino
Talvez porque nú eu te entenderia ainda menos

Teus olhos me traem com a sua nuca e me sinto destentada
Não aceito o sentimento indigente
Vou enterra-lo quando houver um nome
Não o perdoô pela alegria desta noite
Mas teto de porão não acorda com minhas lágrimas de lamentação, tampouco com a chuva

Coloco-te na minha estante como um livro não lido
A imensidão azul da capa é a cor que escolhi para os ventos das suas palavras sopradas ao meu ouvido
Velojo a encontrar uma plaquinha de fim no mundo redondo
Céu e mar se encontram na imensidão azul e vejo que perdi teu sopro
Agora tenho apenas o abraço em que as pontas dos dedos não se encontraram
E a vontade do reencontro
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