a morte de Maria

20 de outubro de 2008

Quando eu soltei a mão de Maria, foi como se tivessem me arrancado o dente da frente. Naquela noite, já com os joelhos feridos, as pernas doendo, problemas na coluna e magro eu terminava minha saga de dois meses ao lado dela em coma. Aquele silêncio me fazia tanto mal que, quando comia, eu jogava pra fora toda sujeira que tinha preenchido aquele vazio. As vezes acho que Maria ficou doente pra me castigar por eu não saber ficar em silêncio ao lado de outrém. Quando ela se foi, eu nem encontrei lágrimas para chorar, não é que eu não tenha ficado triste é que eu já estava um pouco cansado de segurar a sua mão, pareceu o fim de um tormento para mim e para ela. Chegando em casa eu achei o nosso livro de fotografias, não fui ao velorio ou enterro, fiquei sentado de frente para nossas fotos, reparei que o semblante de Maria nas fotos era muito diferente daquele do quarto do hospital. Quando abri a porta do guarda - roupa em meu quarto , que até me parecia um lugar estranho, eu me assustei com o cara que vi no espelho, ele tinha barba, cabelos grandes e parecia bem mais velho. Na certa eu não era o mesmo sem minha doce Maria. Hoje fazem dois anos que Maria morreu, eu não sou bom com datas, mas me lembrei porque no dia da sua morte eu tentei escrever uma carta e levar para sua lápide, acontece que só saiu a data. Eu achei essa carta no meu paletó velho que ela tanto gostava. Desde que Maria se foi eu nunca mais o usei. Quando achei a carta, fui levar para ela, sim eu fui até o cemitério honestamente acho que ela ia gostar daquela carta silênciosa, não consegui encontrar a sua lápide. Quando o coveiro veio me ajudar, senti que seu túmulo me parecia mais um jardim, eu nunca fui levar flores para ela. Achei a cena tão bonita que percebi que não era mais necessário deixar a carta. Quando nos conhecemos eu prometi para ela que seguraria a sua mão para sempre. Hoje olhando assim de longe, acho essa promessa tão descabida. Onde já se viu prometer isso? Afinal de contas um dia, um de nós dois morreriamos, o que eu pensei? Prometi que não faria promessas novamente.

Pai

Os dedos dele acariciavam minha franja lentamente, iam tocando meus cabelos.
- Pai, como é ter 73 anos?
- É já ter vivido muita coisa, minha filha.
Deitada em sua barriga sinto ele esvaziar os anos.
- Pai, se lembra quando eu era criança e ficava acordada até de madrugada lhe esperando?
- E eu sempre lhe trazia um chocolate.
Naquele momento, pensei que ele ainda me traz um chocolate as vezes. Talvez eu é que tenha esquecido dos tempos em que eu o esperava madrugada a dentro.
- Eu sinto saudades de ser criança pai, sinto falta de jogar video game até tarde e de não ter responsabilidades.
- A minha filha a vida é dificil só no começo, depois você se acostuma.
Eu quis pedir pra que ele fosse pro quarto e contasse uma história pra eu dormir. Um desses contos de fadas que eu acreditava quando a vida num era dura.
- Pai você se lembra quando eu sentia frio a noite e você ia lá me cobrir. Se lembra de você na beira da cama me contanto historias. Se lembra que você pedia pra mãe não me bater. Se lembra que eu te pedia para alugar "Alladim" todo fim de semana, até que você me deu o filme.
Sinto os braços dele cairem e um leve ronco.
- É pai essa noite sou eu que vou te cobrir.
Boa noite, dou-lhe um beijo na testa.
Vou sozinha para meu quarto. Na cabeceira, Mario Quintana me acompanha e logo reconheço: É por isso que inventaram os livros, porque os pais envelhecem. Foi pra isso que inventaram os livros, pra isso. Como eu nunca havia percebido. Como?

Cordão umbilical

- Mãe quero voltar para seu útero.
Fiquei trépida.
- Filha não tem como você voltar para meu útero.
Então ela se encolheu no canto da sala em posição fetal.
O frio cerrava os meus dentes e paralasiva minhas articulações.
- Vem mamãe deite comigo.
Um sangue começa a jorrar de seu corpo e me aquecer.
- Mãe, quando eu morrer deite - me na chuva embaixo daquele escorregador do parque que eu tanto gosto.
Palidamente ela foi se tornando apenas um traçado.
- Mãe, nunca me diga adeus, nunca.
Ela se desfez entre meus braços.
- Você nunca vai partir filha.
Naquele instante, sua morte se tornou o cordão umbilical que nos liga.









século 21

a água desfazia os meus cachos, roubava suas cores douradas. eu tremia, não sei se de frio ou de nervoso. a chuva escorria pelos cabelos lisos dele e fazia com que eles ficassem ainda mais negros. nossos corpos ficavam cada vez mais sinuosos. o silêncio era constrangedor. os olhinhos apertadinhos dele fugiam de mim o tempo todo. eu queria toca-lo, mas algo me impedia. meu estômago queria jogar todo aquele sentimento agonizante pra fora. foi ai que ele quebrou o silêncio e me disse:
- Preciso te confessar uma coisa.
Agora sim parecia que eu não ia aguentar.
Então ele soluçou:
- Sou gay.

lágrima no bolso

a garoa lá fora é a mesma meu bem
a gente aqui dentro é que mudou
a garoa lá fora tem a mesma finura
a mesma finura das nossas lágrimas

nossos corpos nús jogados no chão
vesti tuas roupas
bata a porta
não se despeça
eu odeio despedidas

guardei uma lágrima no teu bolso
vai se lembrar de mim quando o sol nascer
ah meu amor, eu prefiro a noite
eu prefiro a garoa fininha dos teus lábios

as gotas de chuva cairam, querido
nós também caimos
caimos nús na sala, entrelaçados
como as gotas de chuva unidas pela correnteza

quando o sol iluminar nossas nuances
você vai se perguntar se foi coragem
você vai se perguntar se foi covardia

eu vou continuar nua na sala
pensando que não foi coragem
não foi covardia
foram só dois corpos felizes por se entrelaçarem

e a minha lágrima no seu bolso
vai dizer que eu sinto saudade
e a minha lágrima no teu bolso
vai inundar que eu sempre sinto saudade







acima das nuvens


Era estranho estar acima da nuvens. De lá o mundo me parecia bem pequeno, tal como as maquetes que eu sofria para montar quando criança. Pra enfrentar o medo daquele lugar estranho, fechei os olhos, tentei ir para um lugar feliz, como eu sempre via nos filmes. Há dias em que acho que vejo filmes demais. Eu precisava mesmo era de um drink, aquilo tudo tinha gosto e cheiro de fim de noite, mas eu estava apenas presa em uma cadeira e ali permaneceria. Depois de um tempo, as nuvens foram me passando uma paz, uma paz infantil. Dava vontade de pular naquele algoodão gigante. Logo veio a chuva, a chuva sempre vem. Agora era aquele barulho dos pingos embassando a janela. E agora são meus olhos que, calejados de chorar, embassam minha vista do mundo. Eu ia lendo um livro. Eu ia lendo "O Regime da Lua" quando eu tinha sete anos. Eu fechei esse livro e troquei pelo "As mil e uma noites". E troquei por outro e por outro e por outro. E agora estava eu sentada na beira da lago olhando para aquela menina que tremia de frio, que tremia com o balançar das águas. De repente, ela me deu um sorriso tão sincero, que eu retribui prometendo que a protegeria. Ali fechei o livro e decidi que abrir outro. Então fechei os olhos e fui para um lugar feliz, que estava comigo o tempo todo, é que eu tinha esquecido de me revirar. E assim mais alguns quadros fotografados giravam no projetor da vida.
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