O Roteiro


Quando Mathias bateu na porta, eu fiquei me perguntando se deveria abrir ou não. Há algum tempo eu não atendia ninguém. Sem saber o porque, larguei a máquina de escrever e abri a porta. Ele entrou e sentou na velha poltrona marron. Eu continuei datilografando o roteiro, enquanto ele insistia em ligar a vitrola que não funcionava mais. Tentei fingir que ele não estava lá, mas aos poucos ele conseguiu ligar a vitrola, eu comecei a fazer o seu café, comecei a lhe dar cobertas a noite. Nunca soube exatamente o porque, mas era isso que eu fazia. Era engraçado e estranho saber que agora o barulho da máquina de escrever era dividido com os passos dele pela casa. Meu roteiro foi se modificando com a presença dele, acho que é por isso que eu não abria a porta pra ninguém, sofria de um medo absurdo de ter que mudar meu roteiro com a entrada de novos persoangens e o tal final feliz que eu tinha preparado não acontecesse. Faz dias que não sei se Mathias ainda está aqui, o meu tempo para entregar o roteiro está ficando curto e eu quase não escuto seus passos. O café esfria na mesa e não sei se ele sente frio a noite. Há tempos não me incomodava ficar sozinha, isolada nessa casa de campo, mas nesses últimos dias tem sido estranho não saber se Mathias está aqui ou se ele já se foi. Acho que por causa disso que não consigo terminar o roteiro. Eu preciso de um fim, não gosto de histórias que tenham um fim em aberto, porque não gosto de continuar velhas histórias. Preciso de um fim, Mathias você ainda está aqui? E você leitor, conseguiu chegar até o fim desse história, meio sem fim.

O Rei Arthur e a Puta

Sentei-me bem na ponta daquele banco de madeira branco. Noutro canto estava ele, Arthur. Nunca tinha o visto tão quieto, sentado daquele jeito. Faz exatamente 3 meses que Arthur internou-se na clinica de recuperação para drogados, mas fazem 3 anos que não nos vemos. Eu não fazia idéia do que dizer e ele ficou com o olhor perdido em mim. De repente, ele soltou:
- Você está ainda mais bonita.
Dei um sorriso tímido. Eu estava usando uma blusa de um seriado, um short jeans e um colete preto. Muito diferente das saias curtinhas, botas e tomara que caia que eu costumava usar quando ele me conheceu.
A única coisa que consegui perguntar foi:
- Tá tudo bem com você?
- Que que aconteceu com a gente hein? Éramos tão felizes. (Ele me disse com um olhar triste)
Eu queria responder que a droga estragou tudo, mas a verdade é que o Arthur não é o vilão dessa história. Quando eu e Arthur nos conhecemos eu trabalhava no cabaré da Dona Odilia, foi lá que me fiz puta e aprendi tudo que sei. Um dia, amargurado com o namoro que não lhe trazia felicidade, Arthur foi até o puteiro em busca de distração. Dona Odilia me apresentou para ele e acabei não fazendo o programa naquela noite. Conversamos a noite toda e quando ele quis pagar não aceitei. Arthur voltou muitas noites no Cabaré. Entre os homens que iam e vinham ele foi o único por quem eu senti vontade de passar a noite e não fazia pelo dinheiro.
Arthur me fez aprender a coisa mais esquisita da vida, é possível amar alguém e ser amado, mas mesmo assim não ser feliz. Eu estava enlouquecida com ele e ele comigo. Quase todas as noites ele ia ao Cabaré, riamos muito e a companhia dele era a melhor coisa que eu tinha. Passavamos a noite conversando e o tempo voava, um dia brinquei que ele era o Rei Arthur e eu apenas uma puta.
No mês de janeiro, Arthur começou a não ir todas as noites me visitar e eu fui ficando cansada daquilo. Um dia, de supetão, disse a ele que nunca mais queria vê-lo. Não era verdade, mas eu achei conveniente. Ele foi embora meio triste. Eu ainda não sei porque tomei aquela atitude, mas também nunca soube porque ele parou de me visitar.
Em três anos Arthur usou todo tipo de drogas possíveis, se tornou também um lixo que a sociedade queria se livrar. Assim como eu na minha condição de puta. Eu conheci vários amores, mas nenhum foi como ele e com ele aconteceu a mesma coisa. Engraçado como o mundo muda em 3 anos. Eu resolvi largar o Cabaré, escrevi um livro "O Rei Arthur e a Puta". Passei um ano me dedicando a ele e o lancei ontem, foi um sucesso. Se você tava se perguntando porque eu vim visitar o Arthur, tá ai a resposta. Vim lhe entregar o livro que diz o quanto ele me fez bem e o quanto me fez mal.
- Vim lhe trazer isso
- "O Rei e a Puta"? (Ele riu)
- Pois é, escrevi.
Passamos o resto da tarde rindo da situação.Arthur foi o grande amor da minha vida. Eu queria que ele ficasse com o livro de recordação. No inicio da noite fui embora.
- Adeus Arthur
- Adeus... (o meu nome não importa, agora podem escolher me chamar de puta ou de escritora, tanto faz.)

abrigo
















debruçada nas paisagens que iam embora
eu observava as pessoas ao meu redor
o cara com o radinho
a moça fazendo sombracelha
o senhor com chapéu e bengala
naquele trem, eu era só mais uma

parecia que alguém havia desligado o meu radinho
aquele que tocava as sirenas, buzinas e xingamentos do trânsito
ali a minha sombracelha dava um semblante tranquilo a minha face
quanto a colocar algo na cabeça, a perseguição cognitiva diária
e a bengala que fazia eu me preocupar com os caminhos que eu ia trilhar
nem estavam lá

aliás a única trilha que eu queria naquele momento era o barulho do trem
aquelas paradas nas estações,
parecia-me por alguns instantes que aquela solidão compartilhada fazia sentido
e aquele silêncio que tanto me dizia

aos poucos meu coração ia adormecendo
há dias ele vivia de insônia
agora ele se debruçou na janela do trem
deitou-se sereno, tranquilo

um rapaz pergunta se pode se sentar ao meu lado
eu nunca tinha visto ele
mas ele tinha os olhos mais brilhantes que eu já vi
como se estivesse deslumbrado com a viagem
acho que foi assim a primeira vez que viajei, mas havia me esquecido

quando cheguei sozinha na estação tomei um café
sentada naqueles banquinhos vermelhos eu me sentia num filme

o sereno, o vento, a chuva
e meu coração calmo, quase dormindo
há tempos eu não parava na estação pra tomar um café

Fui embora com a certeza de que eu precisava parar em algum ponto
que eu precisava de um abrigo
uma casinha tranquila, silenciosa
um repouso cá dentro para entender todo o barulho do lado de fora

cônjuge













as silhuetas se confundem a cada aproximação
recoste tua a alma a minha, ela pedia
perdida nos vários fragmentos de si
urgente era o abraço
aquele abraço que não vinha

o caminho era longo
queria mesmo era chegar a lugar nenhum
a noite era minima
repleta de desejos ocultos
esses sorrisos fazem morada em mim
mas vê-los agora está além de minhas pupilas

eu queria era perde-me em seus cabelos
queria perder-me em todos meus anseios
comer-te até o fundo
ver o corpo e o coração desnudos
sugar o sangue
só pra encontrar a alma
o tal abraço urgente

entre um vagão e outro há sempre um espaço pra fumantes
entre um cigarro e outro eu fico a me perguntar:
todo preterito é imperfeito?

queria mesmo era conjugar o tempo
ou quem sabe cônjugar o tempo
se é que isso é possivel.

foto de Christoffer R.

o cais

a saudade embarca no horizonte
enquanto eu continuo sentada solitária no cais
um enorme eco assola meu coração
noutra noite a dor não coube em mim
saltou pelos meus olhos e as minhas lágrimas fizeram-se mar
o que me aflinge é não poder ter balançado o lenço do adeus

outrora as distâncias me pareciam curtas
eu quase podia sentir a lua
naquelas noites o tempo não tinha hora pra acabar
o sol subia ao céu como as letras de FIM nos filmes
os sorrisos pairavam em meus lábios como as gaivotas no mar

noutra noite a lua me falava sobre as travessuras
enquanto eu recostava meus pensamentos sobre meu velho companheiro
aquele travesseiro que esteve comigo em todas as travessias
deito-me ao relento de minhas lembranças
o cais é um pouco frio, querido
não há como cobrir a alma

o silêncio me incomoda
a loucura deita-se comigo
é, ela nunca me abandona
encontro companhia naquela menina refletida na água
e adormeço, ainda inquieta
é que o silêncio me aflinge

amanhã o barulho dos barcos vão me acordar
e eu vou escrever um samba
porque num há melhor maneira de falar de tristeza de um jeito alegre
e lá vou eu chorar pelos barcos que se vão
Copyright @ Centopéia | Floral Day theme designed by SimplyWP | Bloggerized by GirlyBlogger