Faz quarenta dias...
Não me sinto tão sozinho, eu tenho meus amigos
Só aparecem quando eu bebo
Só aparecem quando eu não sou eu"
(Musica: Pra abrir os olhos, banda Vanguart)
O fosforo queimava meu terceiro cigarro, na fumaça retocada pela luz eu via as pessoas passarem com seus relogios, apressadas, enquanto eu continuava sentada naquele banco da praça. Com medo que a qualquer momento meu peso fizesse ele tombar em alguma das pontas. As long necks ao meu lado vazias as 3 da manha. Eu queria avisar pra alguem que nem sempre foi assim e que eu ja sai rodeada de amigos. Antes deles terem relogios, cachorros e relatorios. Mas achei que nao seria conveniente parar um estranho pra dizer isso.
As 5 da manha todos pareciam ja ter criado seus proprios problemas e suas proprias afliçoes. Eu tinha um maço de calton vazio, umas long necks no chao, um pulmao destruido e um pouco de sono. Caminho meio tonta ao ponto de onibus. Encontrava com quem dividir um beijo, mas nao encontrava com quem dividir um sorriso.
Todos mergulharam-se em seus proprios problemas, eu e que fiquei a margem. Com os baloes de oxigenio, ninguem sobe pra respirar e por consequencia ninguem me ve.
Mesmo rosto
No caminho de volta para casa sinto falta do barulho dos passos dele, da voz, do sotaque nordestino carregado que nao parava de falar, enquanto eu so sentia vergonha dele pegar a minha mao tao suada. Sinto falta da reclamaçao que ele arrumava quando tinha que dividir a cama comigo e do mal humor matinal. Sinto falta do "te cuido" e de encaixar minha cabeça entre o pescoço e a cabeça dele.
Sabe aquela mania que eu tinha de colocar o despertador dez minutos mais cedo so pra acordar e ficar um pouco mais com voce, acabou. Eu nem sabia que mania acabava. Sabe aquela mesa de centro que voce sempre esquecia a chave, vendi. Agora a mania que voce tinha de nao colocar acento nas palavras, ficou pra mim.
As vezes a noite saio para caminhar, saio para te esquecer. Compro um cigarro picado, coloco o fone de ouvido, sento no banco da praça e leio o jornal. Tres long necks e depois fico ouvindo sua voz pela casa. Fico com saudade dos seus calçados espalhados pela casa. Daquele cheiro de sabao em po das suas camisas e do cheiro de suor do bone. Sabe que hoje eu quase fiquei com uma quase vontade de ir te ver, mas ai adormeci no sofa.
Pai ternal
Hoje mais uma parte do meu pai morreu. Esse velório quase mensal tem tornado meu coração fúnebre. Acho que ainda não aprendi a viver sem o braço direito dele. Acho que na verdade eu não sei viver nem sem o dedo mindinho dele. É como se eu tivesse perdendo meu cordão umbilical com o mundo. As vezes sinto vontade de voltar para o útero e retroceder os nove meses.
Eu ainda acordo no meio da noite pra ver se ele ainda está respirando e pra ver se eu ainda estou respirando. Eu ainda tento falar com ele todos os dias, num esforço imenso. As vezes apenas fico lá segurando a mão dele, pra que ele não desista ou pra que eu não desista. Quando digo para o mundo que está tudo bem, não é lá muito verdade. Quando eu digo a ele que ele está bem, também não é lá muito verdade. Tem dias que marcam a gente pra sempre. Hoje uma pequena morte de uma parte, já me marcou, pra sempre.
Dança
A curiosidade não me deixa ser permanente
O nosso sentimento ninguém divide, ninguém leva
Bo- rã - o
Em meio a fumaça do cigarro, seu rosto era o borrão mais bonito que eu já tinha visto
Teus dedos entrelaçados aos meus cabelos faziam meus cachos cairem em serpentinas de carnaval
Mas faltava uma ponte entre o passo do meu desejo e a insegurança das minhas pernas
Seu corpo inteiro cheio de desenhos e nenhum nome, gritava: decifra-me
Diferente da trilha sonora que tinha nome e nenhuma letra
Danço nas suas beradas esperando tropeçar e cair em alguma porta aberta tua
Você ri do meu improviso, mas é que meu corpo já viveu demais para aquele figurino
Eu conto os dentes entre os teus lábios, mas não termino
Talvez porque nú eu te entenderia ainda menos
Teus olhos me traem com a sua nuca e me sinto destentada
Não aceito o sentimento indigente
Vou enterra-lo quando houver um nome
Não o perdoô pela alegria desta noite
Mas teto de porão não acorda com minhas lágrimas de lamentação, tampouco com a chuva
Coloco-te na minha estante como um livro não lido
A imensidão azul da capa é a cor que escolhi para os ventos das suas palavras sopradas ao meu ouvido
Velojo a encontrar uma plaquinha de fim no mundo redondo
Céu e mar se encontram na imensidão azul e vejo que perdi teu sopro
Agora tenho apenas o abraço em que as pontas dos dedos não se encontraram
E a vontade do reencontro
Aonde mora meu lugar feliz?
Já nem sei mais quantas noites acordada. Já nem sei mais quantas vezes no escuro acordo para ver se ele ainda respira, ainda que com toda a dificuldade possível. Obrigatoriamente, amanhã a vida começa cedo e ainda que não consiga ou ainda que eu não dê conta, todas as pessoas me esperam lá com seus relógios. Enquanto todas as pessoas sonham, eu me reviro na angústia. Nos dias em que não me obrigo ver o sol nascer, minha noite começa as 6h da manhã.
Sabe moço, quando você me jogou no mundo, receio que tenha me dado uma mochila maior que eu. Vivo a arrasta-la, isso me causa muito cansaço. Logo, não tenho tempo para amar, não tenho tempo de trocar minhas roupas, não tenho tempo de... Você podia ao menos não ter inventado o relógio, ai já me ajudaria um bucado. A solidão tem tomado conta, mesmo acompanhada. Mas sabe qual é? Amanhã eu não quero satisfazer ninguém além de mim. Criei um roteiro, porque sabe alguns capítulos valem muito a pena. Aqueles com participação especial, mas que vocês escreve a história. Meu lugar feliz? É um banco dentro de mim que meu velho sentou-se por muitas vezes. Hoje apenas eu vou visita-lo no lugar feliz dele. Lá se vai a noite e eu peço calma e um pouco de paz e principalmente, sono, muito sono. Boa noite, moço, moça e a senhorinha de 82 anos que ficou ouvindo essa história.
Pralgum arrematamento
Com uma caneta na mão eu desenhava no meu braço uma projeção do nosso futuro enquanto você vomitava os corpos femininos daquela noite. Despencada no chão, eu me esperançava que as nuvens estivesse correndo “pralgum” lugar, já que eu continuava amarrotada junto com as roupas de cama.
Me falta fôlego pra arranjar uma palavra, e apenas uma palavra, em qualquer outra língua que tenha o mesmo significado da nossa saudade. Me falta fôlego para contrariar minha quase vontade de sair na chuva de guarda chuva. Me falta fôlego pra cuspir os meus corpos masculinos tão plásticos.
Passo horas acertando o relógio para ver se de alguma forma encontro uma direção qualquer. Corro no caminho contrário ao bloco do carnaval. Enquanto você me espera ao lado do palhaço, eu, Colombina, lhe coloco um laço vermelho e guardo num canto qualquer do guarda-roupa. Embrulho, embromo.
Na minha boca o gosto amargo dos dois maços de cigarro se misturava ao chicletes de menta enquanto eu engolia bolinhas de sabão docemente amargas. Na sua boca um gosto amargo de passado misturada a doçura do carnaval. Nos enchendo com nossos vazios.
Já inchada de tanto nada, me amarrotei num carnaval, me amarroto em vários carnavais, mas um dia eu vou arrematar. Ah! um dia eu arremato.